É comum as pessoas se queixarem do barulho provocado por reformas feitas em apartamentos vizinhos e que causam inúmeros transtornos àqueles que habitam o mesmo prédio. Além da sujeira, da poeira, dos danos nas áreas comuns, como corredores, portas e elevadores, o pior dos incômodos ainda é a perturbação sonora, sem dúvida alguma. Mas, afinal, é preciso tolerar esse tipo de conduta ou há limites que devem ser observados por quem pretende executar uma obra em prédio já habitado?
O uso anormal da propriedade está disciplinado pelo Código Civil nos artigos 1.277 a 1.279, que positivaram o princípio segundo o qual não se pode exercer o direito de propriedade de tal modo que seus efeitos venham a prejudicar o sossego, a saúde e ou a segurança dos que habitam o mesmo prédio ou o prédio vizinho. Assim, será anormal o uso da propriedade sempre que provocar incômodos não toleráveis pelo “homem médio”.
Waldir de Arruda Miranda Carneiro salienta que a poluição sonora não é, ao contrário do que pode parecer numa primeira análise, um mero problema de conforto acústico, não produz só incômodos às pessoas nervosas, mas termina por enfermar as sãs. E isso não diz respeito apenas aos ruídos provocados durante os horários destinados a descanso, mas em qualquer momento do dia ou da noite [1].
Vale dizer que a ideia da limitação dos ruídos apenas em horário noturno, ao contrário do que pode parecer, não encontra sequer fundamento legal. Como refere João Nascimento Franco [2]:
Muitos supõem que o barulho deve ser coibido apenas depois das 22 horas. Trata-se de engano, porque o incômodo aos vizinhos tem de ser evitado a qualquer hora do dia ou da noite, e o barulho excessivo impede o trabalho nas horas úteis e o repouso no final do dia. Na medida em que lesa a paz e o sossego alheio, o barulho tem de ser coibido independentemente do horário em que é produzido. A única distinção entre os níveis de ruído para períodos diurno e noturno, que se justifica (e isso já se faz como regra geral – cf. item 6.2.4 da NBR 10.151), é a adequação do limite base (Nível Critério de Avaliação – cf. item 6.2.1 da NBR 10.151) ao ruído ambiente, que durante o período diurno costuma ser superior ao noturno.
Portanto, o respeito aos direitos de vizinhança, especialmente em condomínio edilício, não se reduz à não produção de ruídos em períodos de descanso eventualmente ajustados em norma convencional. Vai além: a poluição sonora é grave infração dos deveres de vizinhança. Todos têm, é evidente, o direito de usar e fazer em sua propriedade aquilo que entenderem por bem, ou necessitarem, desde que não causem intranquilidade, importunações, incômodos, desassossego ou danos aos vizinhos. Mesmo que haja prévia autorização do Poder Público para eventual construção ou reforma, a conduta do agente será considerada uma infração se ultrapassar os limites permitidos pela legislação civil, pois a autorização administrativa é dada sob a reserva implícita de não serem lesados os direitos de terceiros.
E foi para evitar problemas dessa ordem que o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) estabeleceu, pela Resolução nº 1/90, item II, serem prejudiciais à saúde e ao sossego “os ruídos com níveis superiores aos considerados aceitáveis pela NBR nº 10.151”; e, no item III, que “os níveis de som produzidos pela execução de reformas ou construções de imóveis não poderão ultrapassar àqueles estabelecidos pela NBR nº 10.152”.
Pela NBR nº 10.152,
- o limite aceitável para ruídos em dormitórios é de 45dB(A); em salas de estar = 50dB(A);
- o limite aceitável para conforto acústico em dormitórios é de 35dB(A); em salas de estar, 40dB(A).
Obs: uma conversa em tom normal produz, em média, 50dB;
É importante também referir que, conforme o artigo 24, § 1º, da Constituição Federal, as diretrizes da Resolução nº 1/90, do CONAMA, incorporando os valores da NBR nº 10.152, são normas gerais. Sendo assim, Estados e Municípios podem suplementar esses valores para o efeito de fixarem outros, menores, em decibéis, mas não podem diminuir os índices de conforto acústico estabelecidos pela norma federal.
Pois bem, a interpretação sistemática dos artigos 1.337 e 1.228, do Código Civil, e dos artigos 5º, XXIII, e 170, III, da Constituição Federal, leva à compreensão, portanto, de que o direito de propriedade deve ser compreendido a partir de sua função social, ou seja, deve prevalecer, em eventual conflito, os direitos coletivos em detrimento dos meramente individuais, pela aplicação do princípio da proporcionalidade.
Por evidente, a propriedade não deixou de ser um direito subjetivo, mas é visto, hoje, como um direito-dever, não sendo legítimo todo e qualquer ato ou omissão que dela decorre, devendo-se interpretar as regras jurídicas sociológica e teleologicamente (LINDB, art. 5º).
Logo, apenas por deter um título de propriedade, não tem o proprietário de uma unidade imobiliária o direito de agir em discordância com as mais elementares regras relativas à convivência em condomínio. Caso assim proceda, caberá ao vizinho prejudicado o direito de exigir judicialmente que se façam cessar as causas da conduta lesiva que provoca perturbação/poluição sonora, mediante ações inibitória e ou reparatória, conforme o caso.
[1] CARNEIRO, Waldir de Arruda Miranda. Perturbações Sonoras nas Edificações Urbanas. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 2.
[2] FRANCO, João Nascimento. Condomínio. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 139.
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Gaysita Schaan Ribeiro – Especialista em Direito Imobiliário, Regularização de Imóveis e Inventários
Obs: os textos publicados neste Blog têm conteúdo informativo, não exaurem o tema e, em casos concretos, recomenda-se a análise por um advogado especialista e de confiança do leitor.